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Os mistérios dos primos gêmeos: Densidade relativa, heurísticas e perspectivas analíticas.

 

Os mistérios dos primos gêmeos: Densidade relativa, heurísticas e perspectivas analíticas.

Autor: Marcelo Fontinele (projeto de tese em colaboração)

1. Introdução

Os números primos gêmeos — pares de primos (p,p+2)(p, p+2) — ocupam papel central na teoria dos números, conectando técnicas de crivo, análises heurísticas e conjecturas profundas. Embora a Conjectura dos Primos Gêmeos (infinitude de pares) permaneça em aberto, desenvolvimentos modernos (como os métodos GPY, Zhang, Maynard–Tao e refinamentos de crivos) reconfiguraram nosso entendimento da distribuição de lacunas entre primos.

Este trabalho propõe um estudo acadêmico focado em: (i) formalização e propriedades básicas; (ii) noção de densidade relativa em intervalos crescentes e entre primos; (iii) heurísticas do tipo Hardy–Littlewood; (iv) panorama de resultados clássicos (Brun, Selberg, Chen) e modernos; (v) um plano analítico–computacional para verificação empírica das previsões.

2. Definições e Notação

  1. Primos gêmeos. Um par (p,p+2)(p, p+2) com ambos primos. Denotaremos por π2(x)\pi_2(x) a função de contagem:
    π2(x):=#{px:p,  p+2 sa˜o primos}.\pi_2(x) := \#\{\,p \le x : p,\; p+2\ \text{são primos}\,\}.

  2. Primos e contagem usual. π(x):=#{px}\pi(x) := \#\{p \le x\} é a função de contagem de primos.

  3. Constante dos primos gêmeos. C2:=p3p(p2)(p1)2C_2 := \prod_{p\ge 3} \dfrac{p(p-2)}{(p-1)^2} (produto tomado sobre todos os primos p3p\ge3).

  4. Integral de segunda ordem (forma “Li₂”). Defina
    Li2(x):=2xdt(lnt)2.\operatorname{Li}_2(x) := \int_{2}^{x} \frac{dt}{(\ln t)^2}.
    Esta notação é conveniente para enunciar a forma integral da conjectura de Hardy–Littlewood.

Observação (forma 6n±1). Todo primo p>3p>3 satisfaz p±1(mod6)p\equiv \pm 1 \pmod 6. Logo, exceto o par (3,5)(3,5), todo par gêmeo tem a forma (6n1,  6n+1)(6n-1,\;6n+1).

3. Densidades: natural, relativa e logarítmica

3.1. Densidade natural entre os inteiros

A densidade natural dos primos gêmeos no conjunto dos inteiros até xx é π2(x)/x\pi_2(x)/x. Resultados de crivo (e heurísticas) sugerem que π2(x)\pi_2(x) está da ordem de x/(lnx)2x/(\ln x)^2. Em particular,
π2(x)x1(lnx)20(x).\frac{\pi_2(x)}{x} \asymp \frac{1}{(\ln x)^2} \to 0 \quad (x\to\infty).
Logo, a densidade natural é zero.

3.2. Densidade relativa entre os primos

É útil medir a frequência de pares gêmeos condicionada ao fato de estarmos “dentro” dos primos. Considere
Δπ(x;h):=π(x+h)π(x),Δπ2(x;h):=π2(x+h)π2(x).\Delta\pi(x;h) := \pi(x+h) - \pi(x), \quad \Delta\pi_2(x;h) := \pi_2(x+h) - \pi_2(x).
A densidade relativa local dos gêmeos em (x,x+h](x, x+h] entre os primos é
R(x;h):=Δπ2(x;h)Δπ(x;h).\mathcal{R}(x;h) := \frac{\Delta\pi_2(x;h)}{\Delta\pi(x;h)}.
Heuristicamente (usando π(x)x/lnx\pi(x)\sim x/\ln x) e as previsões de Hardy–Littlewood (Seção 4), espera-se que, para janelas hh não muito pequenas,
R(x;h)2C2lnx(x).\mathcal{R}(x;h) \sim \frac{2C_2}{\ln x} \quad (x\to \infty).
Isto revela um decaimento lento (de ordem 1/lnx1/\ln x) na proporção de pares gêmeos entre os primos na altura xx.

3.3. Densidade logarítmica

Uma noção alternativa é ponderar por 1/n1/n. Considere a soma dos recíprocos sobre os pares gêmeos (constante de Brun):
B2:=pgeˆmeo(1p+1p+2)<.B_2 := \sum_{\substack{p\;\text{gêmeo}}} \Big( \frac{1}{p} + \frac{1}{p+2} \Big) < \infty.
A convergência de B2B_2 implica que, mesmo sob ponderação logarítmica, a contribuição dos gêmeos é “escassa”; em particular, a densidade logarítmica do indicador de gêmeos também é zero. Isso formaliza a ideia de que os primos gêmeos são raros em qualquer noção global de densidade.

4. Heurística de Hardy–Littlewood (Conjectura HL(2))

A Conjectura HL(2) prediz
  π2(x)2C2Li2(x)  (x),\boxed{\;\pi_2(x) \sim 2\,C_2\,\operatorname{Li}_2(x)\;}\quad (x\to \infty),
onde C2C_2 é a constante dos gêmeos. Expandindo Li2(x)\operatorname{Li}_2(x) por integração por partes obtém-se a forma mais simples
π2(x)2C2x(lnx)2(1+O(1lnx)).\pi_2(x) \sim \frac{2 C_2\, x}{(\ln x)^2}\Big(1 + O\big(\tfrac{1}{\ln x}\big)\Big).

4.1. “Fatores locais” e o produto de correção

A heurística nasce do princípio de independência modulado por correções locais: para cada primo qq, a probabilidade de que nn e n+2n+2 não sejam múltiplos de qq é ajustada e, multiplicando-se sobre todos os qq, obtém-se o produto de correção que define C2C_2. Em símbolos,
C2=p3p(p2)(p1)2=p3(11(p1)2).C_2 = \prod_{p\ge 3} \frac{p(p-2)}{(p-1)^2} = \prod_{p\ge 3} \Big(1 - \frac{1}{(p-1)^2}\Big).

4.2. Previsões locais (janelas)

Para janelas (x,x+h](x, x+h] com hh “moderadamente grandes” (e.g. h(lnx)2+εh\ge (\ln x)^{2+\varepsilon}), espera-se
Δπ2(x;h)2C2h(lnx)2.\Delta\pi_2(x;h) \approx \frac{2 C_2\,h}{(\ln x)^2}.
Um modelo de Poisson com média μ=2C2h(lnx)2\mu=\tfrac{2C_2 h}{(\ln x)^2} fornece previsão para variação e flutuações, embora isso não esteja provado rigorosamente.

5. Resultados Clássicos e Modernos Relacionados

  1. Teorema de Brun (1919). A soma dos recíprocos dos primos gêmeos converge: B2<B_2<\infty. Consequência: os gêmeos são ainda mais raros que os primos “em média”.

  2. Crivos de Selberg e de Brun. Fornecem limites superiores do tipo
    π2(x)x(lnx)2,\pi_2(x) \ll \frac{x}{(\ln x)^2},
    compatíveis com HL(2), mas não produzem limites inferiores na mesma ordem para gêmeos (o chamado parity problem do crivo).

  3. Teorema de Chen (1973). Existem infinitos primos pp tais que p+2p+2 é primo ou o produto de dois primos (um P_2). Ou seja, “quase gêmeos” infinitos.

  4. Lacunas limitadas entre primos. Métodos GPY (Goldston–Pintz–Yıldırım), avanço de Zhang (2013), e simplificações/força de Maynard–Tao implicam que existem infinitas lacunas primárias limitadas (pn+1pnHp_{n+1}-p_n\le H para algum HH). Isso dá forte evidência indireta a HL(2), embora não prove H=2H=2.

6. Densidade Relativa em Intervalos Crescentes

Estudamos dois regimes:

6.1. Janelas aditivas: (x,x+h](x, x+h]

Defina a densidade aditiva local
Dadd(x;h):=Δπ2(x;h)h.D_{\text{add}}(x;h) := \frac{\Delta\pi_2(x;h)}{h}.
Heuristicamente, para (lnx)2+εhx1ε(\ln x)^{2+\varepsilon} \ll h \le x^{1-\varepsilon},
Dadd(x;h)2C2(lnx)2.D_{\text{add}}(x;h) \approx \frac{2 C_2}{(\ln x)^2}.
O termo de erro esperado é do tamanho h/(lnx)3\sim h/(\ln x)^3, com flutuações de ordem μ\sqrt{\mu} no modelo de Poisson.

6.2. Janelas multiplicativas: [x,(1+θ)x][x, (1+\theta)x]

Para 0<θ10<\theta\le 1 fixo e grande xx,
Δπ2(x;θx):=π2((1+θ)x)π2(x)2C2θx(lnx)2.\Delta\pi_2\big(x; \theta x\big) := \pi_2\big((1+\theta)x\big)-\pi_2(x) \approx 2C_2\,\frac{\theta x}{(\ln x)^2}.
A densidade relativa entre primos nessa faixa é
R(x;θx)2C2lnx,\mathcal{R}\big(x;\theta x\big) \approx \frac{2 C_2}{\ln x},
reiterando o decaimento 1/lnx1/\ln x.

6.3. Densidade condicional por congruências

A heurística HL incorpora fatores locais por módulo pequeno (e.g. 3, 5, 7), refletindo que pares (n,n+2)(n,n+2) são automaticamente excluídos quando, por exemplo, n0(mod3)n\equiv 0\pmod 3 (salvo (3,5)(3,5)). Essas exclusões produzem exatamente o produto C2C_2.

7. Proposta Heurística (H*) e Métricas de Erro

7.1. Enunciado (H*)

Há uma constante absoluta C2C_2 (a constante dos gêmeos) tal que
π2(x)=2C2Li2(x)+E(x),\pi_2(x) = 2C_2\,\operatorname{Li}_2(x) + E(x),
com termo de erro satisfazendo, para todo ε>0\varepsilon>0,
E(x)=O(x(lnx)2+ε),E(x) = O\Big(\frac{x}{(\ln x)^{2+\varepsilon}}\Big),
uniformemente em janelas hh com (lnx)2+εhx1ε(\ln x)^{2+\varepsilon} \ll h \le x^{1-\varepsilon}:
Δπ2(x;h)=2C2h(lnx)2+O(h(lnx)2+ε).\Delta\pi_2(x;h) = \frac{2C_2\,h}{(\ln x)^2} + O\Big(\frac{h}{(\ln x)^{2+\varepsilon}}\Big).

Comentário. H* é compatível com HL(2) e postula um controle suave do erro médio em janelas “não muito pequenas”, permitindo estudar flutuações locais.

7.2. Métricas de avaliação

  1. Razão principal: ρ(x):=π2(x)2C2Li2(x). \rho(x) := \dfrac{\pi_2(x)}{2C_2\,\operatorname{Li}_2(x)}.

  2. Erro relativo local: ε(x;h):=Δπ2(x;h)2C2h(lnx)21. \varepsilon(x;h) := \dfrac{\Delta\pi_2(x;h)}{\tfrac{2C_2 h}{(\ln x)^2}} - 1.

  3. Normalização de variância: comparar Var[Δπ2]\operatorname{Var}[\Delta\pi_2] com a média prevista μ\mu (teste de “quase-Poisson”).

8. Metodologia Analítico–Computacional (Plano Empírico)

  1. Geração de primos e contagem de gêmeos. Implementar crivo de Eratóstenes segmentado até limites crescentes (e.g. 106,107,10810^6,10^7,10^8).

  2. Estimadores principais. Calcular π2(x)\pi_2(x), Δπ2(x;h)\Delta\pi_2(x;h) para múltiplos hh (aditivos e multiplicativos), ρ(x)\rho(x) e ε(x;h)\varepsilon(x;h).

  3. Ajustes de regressão. Ajustar π2(x)\pi_2(x) a αx/(lnx)2\alpha\,x/(\ln x)^2 e comparar α^\hat\alpha com 2C22C_2.

  4. Testes de robustez. Variar janelas hh, usar bootstrapping de blocos para variância, e comparar com μ\sqrt{\mu}.

  5. Visualizações. Curvas de ρ(x)\rho(x), heatmaps x×hx\times h de ε(x;h)\varepsilon(x;h), histogramas de contagens locais.

Nota prática. Para xx grandes, usar armazenamento/streaming por blocos e crivo segmentado; para hh pequenos, a variância domina e exige amostragem repetida de janelas.

9. Limitações Teóricas e Obstáculos

  • Problema da paridade no crivo: impede, via crivos “puros”, deduzir limites inferiores da ordem x/(lnx)2x/(\ln x)^2.

  • Curto alcance: resultados em intervalos muito curtos estão além das técnicas atuais (mesmo sob hipóteses fortes).

  • Dependência de modelos: previsões do tipo Poisson assumem quase-independência não demonstrada rigorosamente.

10. Conclusões Parciais

A análise de densidades mostra que primos gêmeos têm densidade global nula, mas uma densidade relativa previsível em janelas amplas, decaindo como 1/lnx1/\ln x entre os primos e como 1/(lnx)21/(\ln x)^2 entre os inteiros. A heurística HL(2) — encapsulada aqui na Proposta (H*) — fornece uma lei de crescimento elegante, consistente com crivos clássicos e com a fenomenologia moderna das lacunas entre primos. O teste empírico planejado pretende quantificar o quão cedo essas leis começam a ser observáveis e como flutuações se organizam.


Referências essenciais (clássicas e modernas)

  • V. Brun (1919): introduz o crivo de Brun; prova da convergência de B2B_2.

  • G.H. Hardy & J.E. Littlewood (1923): Conjecturas sobre distribuições de primos (HL(2)).

  • A. Selberg: desenvolvimento do crivo de Selberg e limites superiores.

  • J.R. Chen (1973): Teorema de Chen sobre P2P_2.

  • D.A. Goldston, J. Pintz, C.Y. Yıldırım (2005): método GPY.

  • Y. Zhang (2013): lacunas 7×107\le 7\times 10^7 (posteriormente reduzidas por colaborações).

  • J. Maynard (2015) e T. Tao (Polymath8): novos métodos de crivo para k-tuplas.

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