Pular para o conteúdo principal

As hipóteses de Boussinesq — Fundamentos Físico-Matemáticos

As hipóteses de Boussinesq — Fundamentos Físico-Matemáticos

Em 1885, Joseph Valentin Boussinesq apresentou uma solução analítica para o problema da distribuição de tensões em um meio elástico causado por uma carga concentrada na superfície. Para isso, ele assumiu algumas hipóteses fundamentais, que permitiram idealizar e resolver matematicamente o problema.

Essas hipóteses são:

  1. Meio semi-infinito: o solo é considerado infinito nas direções horizontal e em profundidade.

  2. Meio homogêneo: todas as propriedades (como módulo de elasticidade e coeficiente de Poisson) são constantes em todo o domínio.

  3. Meio isotrópico: as propriedades são iguais em todas as direções.

  4. Material elástico linear: o solo obedece à Lei de Hooke (tensão proporcional à deformação).

  5. Ausência de tensões iniciais: o solo está inicialmente sem tensões atuantes.

  6. Carga vertical pontual: a carga é aplicada em um ponto específico da superfície, perpendicular ao plano.

Essas condições permitem aplicar a teoria da elasticidade linear para resolver o problema. A solução resultante fornece as expressões para as componentes do tensor de tensões em qualquer ponto dentro do solo.

3. Solução de Boussinesq para carga puntiforme

3.1 Modelo matemático

Seja uma carga vertical PP aplicada num ponto sobre a superfície de um meio elástico semi-infinito. Deseja-se determinar a tensão vertical σz\sigma_z num ponto localizado a uma profundidade zz e a uma distância radial rr do ponto de aplicação da carga.

A partir da teoria da elasticidade e da solução de Boussinesq, a tensão vertical no ponto (r,z)(r, z) é dada por:

σz=3P2πz3(r2+z2)5/2\sigma_z = \frac{3P}{2\pi} \cdot \frac{z^3}{(r^2 + z^2)^{5/2}}

Essa expressão é obtida a partir da equação diferencial da elasticidade (equilíbrio interno + Lei de Hooke + condições de contorno). O desenvolvimento completo envolve as equações de Navier-Cauchy, cuja forma geral para um meio elástico e isotrópico é:

μ2u+(λ+μ)(u)=0\mu \nabla^2 \vec{u} + (\lambda + \mu) \nabla (\nabla \cdot \vec{u}) = 0

Onde:

  • u\vec{u} é o vetor deslocamento;

  • μ\mu e λ\lambda são os coeficientes de Lamé;

  • As soluções são obtidas considerando simetria axial e substituindo nas equações constitutivas.

3.2 Fator de influência

É comum reescrever a expressão como:

σz=qIz\sigma_z = q \cdot I_z

Onde:

  • q=Pq = P (neste caso, carga pontual);

  • Iz=32πz3(r2+z2)5/2I_z = \frac{3}{2\pi} \cdot \frac{z^3}{(r^2 + z^2)^{5/2}} é o fator de influência da tensão vertical.

Esse fator depende apenas da geometria: profundidade zz e distância radial rr, e é usado para traçar bulbos de tensão.

3.3 Interpretação física

O termo z3(r2+z2)5/2\frac{z^3}{(r^2 + z^2)^{5/2}} expressa a dissipação espacial da tensão gerada. Ou seja:

  • Quanto maior zz, menor a tensão.

  • Quanto mais distante radialmente da carga, menor a influência.

  • O ponto de máxima tensão ocorre exatamente em r=0r = 0 (embaixo da carga).


3.4 Derivação da solução de Boussinesq para carga puntiforme

1. Fundamentos da elasticidade linear

Partimos das equações da elasticidade para um meio tridimensional, homogêneo, isotrópico e em equilíbrio:

μ2u+(λ+μ)(u)=0\mu \nabla^2 \vec{u} + (\lambda + \mu) \nabla(\nabla \cdot \vec{u}) = 0

Onde:

  • u=(u,v,w)\vec{u} = (u, v, w): componentes do vetor deslocamento (em x,y,zx, y, z);

  • μ\mu e λ\lambda: coeficientes de Lamé;

  • 2\nabla^2: operador laplaciano;

  • (u)\nabla(\nabla \cdot \vec{u}): gradiente da divergência de u\vec{u}.

Assume-se simetria axial (em coordenadas cilíndricas): a carga está no centro (r = 0), não há variação com o ângulo θ\theta. Assim, o problema depende apenas de rr e zz.

2. Função de potencial de Boussinesq

Boussinesq introduziu uma função potencial de deslocamento ϕ\phi que satisfaz a equação de Laplace:

2ϕ=0\nabla^2 \phi = 0

E os deslocamentos são definidos por:

ur=ϕr,uz=ϕzu_r = -\frac{\partial \phi}{\partial r}, \quad u_z = -\frac{\partial \phi}{\partial z}

As tensões são obtidas a partir das relações constitutivas da elasticidade linear:

σij=λδiju+2μεij\sigma_{ij} = \lambda \delta_{ij} \nabla \cdot \vec{u} + 2\mu \varepsilon_{ij}

E os elementos de deformação εij\varepsilon_{ij} por:

εij=12(uixj+ujxi)\varepsilon_{ij} = \frac{1}{2} \left( \frac{\partial u_i}{\partial x_j} + \frac{\partial u_j}{\partial x_i} \right)

Com esses passos e usando a função ϕ\phi adequada para o carregamento pontual (uma forma tipo monopolo), chega-se à tensão vertical no ponto (r,z)(r, z):

σz=3P2πz3(r2+z2)5/2\sigma_z = \frac{3P}{2\pi} \cdot \frac{z^3}{(r^2 + z^2)^{5/2}}

Isso mostra que a tensão depende do caminho espacial da propagação da carga, e que ela se dissipa radialmente e em profundidade.

4. Extensão para carregamentos distribuídos

A solução de Boussinesq pode ser usada como base para integrar casos com carregamentos distribuídos. Vamos ver dois importantes:

4.1 Carga uniformemente distribuída em área circular (Sapata Circular)

Suponha uma carga uniformemente distribuída qq sobre um círculo de raio aa. A tensão vertical σz\sigma_z em um ponto a profundidade zz, sob o centro da carga (r = 0), é dada por:

σz=q(11(1+(az)2)3/2)\sigma_z = q \cdot \left( 1 - \frac{1}{\left(1 + \left(\frac{a}{z}\right)^2\right)^{3/2}} \right)

Esse resultado é obtido integrando a solução pontual sobre a área circular:

σz=02π0a3qz32π(r2+z2)5/2rdrdθ\sigma_z = \int_0^{2\pi} \int_0^a \frac{3qz^3}{2\pi(r^2 + z^2)^{5/2}} r \, dr \, d\theta

4.2 Carga uniformemente distribuída em área retangular (Sapata Retangular)

Seja uma sapata com lados BB e LL, carregada com qq. A tensão vertical no ponto diretamente abaixo do centro da sapata, a profundidade zz, é:

σz=qIz\sigma_z = q \cdot I_z

Onde IzI_z é o fator de influência retangular, dado por:

Iz=14π[BLz211+(B2z)2+(L2z)2+(outros termos)]I_z = \frac{1}{4\pi} \left[ \frac{BL}{z^2} \cdot \frac{1}{\sqrt{1 + \left( \frac{B}{2z} \right)^2 + \left( \frac{L}{2z} \right)^2}} + \text{(outros termos)} \right]

OBS: A equação completa é extensa e normalmente é lida por tabelas ou gráficos de influência (como gráficos de Newmark).

Resumo Visual: Comparação

Tipo de Carga Tensão Vertical σz\sigma_z no ponto (0, z)
Pontual 3P2πz3(r2+z2)5/2\frac{3P}{2\pi} \cdot \frac{z^3}{(r^2 + z^2)^{5/2}}
Circular q(11(1+(az)2)3/2)q \left( 1 - \frac{1}{\left(1 + \left( \frac{a}{z} \right)^2 \right)^{3/2}} \right)
Retangular qIzq \cdot I_z (com IzI_z tabulado ou integrado numericamente)

5. Aplicações práticas das hipóteses de Boussinesq

5.1 Determinação de tensões no solo sob fundações

As soluções de Boussinesq são fundamentais para calcular a distribuição de tensões verticais no solo devido a diferentes geometrias de carregamento:

  • Sapata isolada: usa-se o modelo de carga circular ou retangular.

  • Radier ou fundações em bloco: pode-se dividir a área em pequenos elementos com carga qq, e aplicar o princípio da superposição.

  • Carregamento excêntrico: considera-se o deslocamento do centro de carga e usa-se as funções de influência corrigidas.

Essas tensões são usadas para:

  • Verificar recalques

  • Evitar ruptura por cisalhamento

  • Avaliar efeito de sobreposição de carregamentos vizinhos

5.2 Bulbos de tensão para análise de recalques

Os bulbos de tensão indicam como a carga se propaga em profundidade. Eles ajudam a identificar a espessura de solo efetivamente solicitada, sendo cruciais para:

  • Estimar recalque elástico imediato:

s=qB(1ν2)EIss = \frac{q \cdot B \cdot (1 - \nu^2)}{E} \cdot I_s

Onde:

  • EE: módulo de elasticidade do solo;

  • ν\nu: coeficiente de Poisson;

  • IsI_s: fator de influência para recalque, obtido via bulbo.

  • Dimensionar a profundidade de investigação geotécnica: o solo deve ser investigado até onde σz0,2q\sigma_z \geq 0{,}2q, geralmente entre 1,5B e 2B abaixo da base da fundação.

5.3 Avaliação de interferência entre fundações

Quando duas sapatas estão próximas, seus bulbos podem interagir, resultando em:

  • Aumento da tensão em regiões de sobreposição;

  • Possíveis recalques diferenciais.

Esse efeito é avaliado sobrepondo os bulbos individualmente, aplicando a superposição das tensões.

5.4 Otimização de projeto de fundações

A partir das curvas de Boussinesq, o engenheiro pode:

  • Decidir entre sapata ou estaca, se as tensões forem significativas em profundidade;

  • Evitar excesso de recalque, posicionando melhor as cargas e otimizando a geometria;

  • Economizar concreto e aço, dimensionando com precisão.

5.5 Aplicações em obras reais

Tipo de Obra Aplicação das hipóteses de Boussinesq
Prédios residenciais      Dimensionamento de sapatas e verificação de recalques em solos argilosos
Galpões industriais      Avaliação de bulbos de tensão para fundações rasas com cargas distribuídas
Obras portuárias      Interação entre fundações e influência de cargas móveis
Pontes      Verificação de tensões sob blocos e encontros, com foco na propagação vertical


6. Conclusão

As hipóteses de Boussinesq representam um dos pilares fundamentais da mecânica dos solos e da engenharia geotécnica. Ao fornecer uma solução analítica para a distribuição de tensões verticais no solo causada por carregamentos aplicados na superfície, essa teoria permitiu o desenvolvimento de modelos confiáveis para análise de fundações rasas e profundas.

Através da análise das expressões derivadas e das representações gráficas dos bulbos de tensão, demonstrou-se como o carregamento é dissipado em profundidade e lateralmente, validando a importância de considerar:

  • A geometria da carga (pontual, circular, retangular);

  • A profundidade do ponto de interesse no solo;

  • A superposição de efeitos, essencial para fundações próximas;

  • A estimativa de recalques, que pode ser feita a partir dos bulbos e da elasticidade linear.

Apesar da elegância e aplicabilidade da teoria de Boussinesq, é importante reconhecer suas limitações, como:

  • A suposição de solo homogêneo, elástico e infinito, o que raramente ocorre na prática;

  • A ausência de plasticidade ou efeitos de ruptura do solo;

  • A necessidade de calibração ou correção quando se aplica a solos reais com comportamento não-linear.

Ainda assim, a aplicação prática dessa teoria, seja por meio de softwares geotécnicos ou de análises manuais bem fundamentadas, continua sendo uma das ferramentas mais poderosas e elegantes na arte de projetar fundações seguras e eficientes.

7. Referências bibliográficas

  • Boussinesq, J. (1885). Application des potentiels à l'étude de l'équilibre et du mouvement des solides élastiques. Gauthier-Villars, Paris.

  • Terzaghi, K.; Peck, R. B.; Mesri, G. (1996). Soil Mechanics in Engineering Practice. 3rd Edition. John Wiley & Sons.

  • Mello, V. F. B.; Teixeira, S. H. C. (2012). Fundamentos da Engenharia de Fundações. Oficina de Textos.

  • Bowles, J. E. (1996). Foundation Analysis and Design. 5th Edition. McGraw-Hill.

  • Lambe, T. W.; Whitman, R. V. (1979). Soil Mechanics. John Wiley & Sons.

  • Das, B. M. (2010). Principles of Foundation Engineering. 7th Edition. Cengage Learning.

  • Massad, F. (2010). Engenharia de Fundações: Teoria e Prática. Edgard Blücher.

  • Caputo, H. P. (1972). Mecânica dos Solos e suas Aplicações. Editora Guanabara Dois.

  • Azevedo, L. F.; Fernandes, M. M. (2004). Geotecnia: Princípios e Práticas. Editora UFV.

  • ABNT NBR 6122:2019 – Projeto e execução de fundações. Associação Brasileira de Normas Técnicas.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Tipos de juntas em construção civil: Importância e aplicações.

Tipos de juntas em construção civil: Importância e aplicações Por: Marcelo Fontinele, MF Engenharia e Consultoria. Introdução As juntas desempenham um papel fundamental na construção civil, proporcionando flexibilidade estrutural e prevenindo danos causados pela movimentação natural dos materiais. Vamos explorar os principais tipos de juntas e sua relevância na engenharia civil. Junta de Dessolidarização A junta de dessolidarização é projetada para separar componentes estruturais, como pisos e paredes, minimizando a transmissão de tensões entre eles. Essa técnica ajuda a evitar fissuras e garantir a durabilidade das estruturas. Junta de Movimentação Essencial em grandes estruturas, como pontes e edifícios altos, a junta de movimentação permite a expansão e contração dos materiais devido às variações térmicas e movimentações estruturais, reduzindo o risco de rachaduras e deformações. Junta Estrutural Integrada no projeto para dividir grandes áreas de concreto ou alvenaria em se...

Fórmulas de Hazen-Williams e Fair – Whipple – Hsiao: Diferenças e aplicações no dimensionamento hidráulico

Fórmulas de Hazen-Williams e Fair – Whipple – Hsiao: Diferenças e aplicações no dimensionamento hidráulico. Introdução O dimensionamento de tubulações é um dos pilares de projetos hidráulicos eficientes. Entre as várias equações disponíveis, destacam-se duas de uso comum: a fórmula de Hazen-Williams e a equação empírica de Fair – Whipple – Hsiao . Ambas visam determinar a perda de carga ou a vazão em sistemas de condução de água, mas possuem abordagens diferentes e são aplicadas em situações específicas . Fórmula de Hazen-Williams A equação de Hazen-Williams é bastante popular no Brasil e em muitos países por sua simplicidade e boa aproximação para escoamento de água fria em tubulações sob pressão , com regime permanente e fluxo turbulento . Fórmula: V = K ⋅ C ⋅ R 0,63 ⋅ S 0,54 V = K \cdot C \cdot R^{0{,}63} \cdot S^{0{,}54} Ou, mais comumente, na forma para vazão (Q) : Q = 0,278 ⋅ C ⋅ D 2,63 ⋅ S 0,54 Q = 0{,}278 \cdot C \cdot D^{2{,}63} \cdot S^{0{,}54} Onde: Q Q : ...

Antigravidade: Explorando os conceitos Matemáticos e Físicos (tese hipotética).

  Antigravidade: Explorando os conceitos Matemáticos e Físicos Resumo Este artigo aborda a noção teórica de antigravidade, um fenômeno hipotético que descreveria uma força repulsiva oposta à gravidade tradicional. Embora a ciência atual não tenha evidências experimentais da existência de antigravidade, os fundamentos teóricos para essa ideia emergem de várias áreas da física moderna, incluindo a Relatividade Geral de Einstein, a constante cosmológica, teorias quânticas de campo e modelos de dimensões extras. Aqui, são apresentados conceitos matemáticos e físicos iniciais que sustentam a especulação sobre antigravidade, abrindo caminho para futuras investigações teóricas. Introdução A gravidade é uma das forças fundamentais do universo, sendo responsável por fenômenos desde a queda de um objeto ao solo até a órbita dos planetas em torno do Sol. Contudo, a ideia de antigravidade — uma força que se oporia diretamente à gravidade — tem fascinado cientistas e escritores de ficção cientí...